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Rita Lee - Foto de arquivo

Rita Lee, uma heroína em minha vida

Cacá Diegues - Jornal O Globo - 14 de Maio de 2023

Rita Lee ousou falar em mulheres que sangram todo mês e outras imagens interditadas pela ditadura


Acho que não perdi nenhuma das nênias mais importantes sobre Rita Lee na televisão, sobretudo aquela em que ela começa espevitada cantando “Ovelha negra” e termina com o filho João recém-nascido em seu colo, cercada por números editados de canções sempre muito modernas pro seu tempo. A história de Rita Lee está contada nas cenas que se alternam entre uma dança assanhada com Maria Bethânia e o inesquecível dueto com João Gilberto a cantar “Jou Jou Balangandans”.

E aí a moça da televisão, responsável pela irretocável programação, nos deixa ler o que esse filho João, bem mais tarde, escreveu e distribuiu pelas redes sociais no trágico dia da morte de sua mãe: nós sabemos o que pretende ser a pessoa depois que ela nos diz quem é seu herói na vida real. E, como João, Rita Lee é uma de minhas escolhas.

Rita Lee não foi apenas a compositora de um número extraordinário de canções que puseram a música brasileira à frente do que se dizia e se fazia naquele momento no resto do mundo. Ela foi também uma compositora de canções populares que enfrentaram o poder militar, alimentando as vítimas civis que estavam de cabeça baixa a aceitar a farsa política imposta ao país.

Rita Lee foi presa pela ditadura em 1976 (“A censura não vai com a minha cara, nem eu com a dela”). Mais que a compositora de canções que reagiam à subserviência cultural, ela foi a artista que ousou falar em mulheres que sangram todo mês, me deixa de quatro no ato e outras imagens interditadas pela censura da ditadura que se instalou no Brasil a partir de 1964. Do álbum “Bombom”, de 1983, metade de suas 12 faixas foi proibida por usar uma “linguagem que divulga e induz aos maus costumes, imprópria à boa educação do povo”. E, quando descobriu seu câncer fatal, homenageou o ex-presidente dando o nome de Jair a seu tumor.

Ao contrário de músicos tradicionais que disfarçavam suas reclamações, Rita Lee sempre manteve clara sua reação a tudo aquilo que se passava no país e no mundo, como o resultado de um retrocesso social que só podia ser vencido se as vítimas fossem também parceiras de cada gesto capaz de cortar uma onda. Para isso, ela nos modernizou.

Talvez se encontre aí sua grandeza como criadora, uma artista que nunca abriu mão de seu direito de manifestar-se socialmente do jeito que tinha vontade de fazer. De um modo pessoal, sem aceitar nenhum tipo de censura ao que tinha vontade de dizer.

Rita Lee nos ensinou a sermos modernos, sem nenhuma comiseração pelo “jeito brasileiro” de ser, aquele falso respeito à ordem que sempre cultivamos como naturalmente nosso. Como se a ordem, presente por citação imprópria em nossa bandeira, fosse de fato uma característica nacional a ser respeitada a qualquer preço. Ela sabia que o nosso projeto de “progresso” nunca teve nada a ver com isso.

Durante a década de 1980, fiz com ela o filme “Dias melhores virão” (entre outras coisas, um elogio a seu modo de ver o mundo). Ela e Roberto de Carvalho foram conosco para Berlim, acompanhar a passagem do filme no politizado festival local de cinema.

A atriz principal do filme, inconformada com a precariedade com que fomos tratados, desapareceu dos eventos do festival e nós pedimos a Rita Lee para representar a produção. O que ela fez com disposição, humor e enorme sucesso. Não vou me esquecer nunca de sua divertida intervenção no famoso muro recém-derrubado que dividia a cidade, recolhendo com Roberto os restos do que trouxe como lembrança de sua passagem por lá.

A criação deve ser sempre reativa e discordar sempre do que é considerado natural. O normal não é nunca um assunto da Arte.

Viva Rita Lee!