Artigo

Vista do Alto da Boa Vista, no Rio Analice Paron/ Agencia O Globo

Pai amoroso, meu salvador

Cacá Diegues - Jornal O Globo - 09 Abril de 2023

Dali, do Alto da Boa Vista para o resto da cidade, rolava o mesmo som que ocupava todos os nossos lares


Meus olhos fechavam de sono. Ou pelo menos tinham muita vontade de adormecer. Mas como dormir se, mesmo de longe, me chegava ainda a vontade de cantar com o resto da turma a cantiga que aprendi com os colegas do Colégio Santo Inácio e com os jesuítas que cuidavam de mim? “Coração santo, tu reinarás, de nosso encanto sempre serás” et cetera e tal.

E lá estava meu pai, o generoso cientista social, grande antropólogo nordestino que me ensinara quase tudo e sobretudo a voz que vinha do fundo das cavernas do colégio que me acostumara a chamar de meu, como era minha a cantiga vinda de uma mistura de páginas ainda escritas à mão pelo professor Gilberto, entre uma e outra observação mais profunda sobre o que assistira a desfilar num canto qualquer da lagoa do Mundaú. Ou seria a de Jequiá? Sei lá.

Só sei que a data era a mesma, a quinta-feira antes da Páscoa, Quinta-feira Santa, antes do Senhor subir enfim em direção à Glória.

Dali, do Alto da Boa Vista para o resto da cidade, rolavam o nada e o mesmo som. O som que enchia o meu quartinho, o som que eu dividia com a família e ocupava todos os nossos lares. E eu dizia para mim mesmo que não havia mais ninguém por ali, a não ser eu mesmo em minha cama, com meus travesseiros impedindo que eu sofresse mais do que devia.

E eu me perguntava o que se passava no mundo. Todos com o devido e merecido conforto, cada um por sua conta e risco. E de cada um eu ouvia os sons que escapavam por janelas e portas, por buracos e frestas, por onde passasse furos que valiam a pena passar pela parte lisa da janela ou porta por onde deviam passar.