Artigo

Faixa de apoio a Vini Jr. no estádio Santiago Bernabeu, em Madrid - Foto: Javier Soriano

O tigre na floresta

Cacá Diegues - Jornal O Globo - 11 de junho de 2023

Não há motivo algum para considerarmos os costumes de outros povos superiores aos nossos, seja no futebol, seja em outro hábito qualquer de cada sociedade


Durante a semana os responsáveis pela correspondência do jornal andaram recebendo bilhetes de protesto em relação a meu artigo sobre o que aconteceu com Vinícius Jr. na Espanha, durante uma partida de futebol. A queixa principal era a de que eu não havia assinalado com precisão precisa a cidade onde Vinícius havia nascido e começado sua carreira vitoriosa de craque.

Acho que esse não é o assunto mais importante nessa história, tanto faz. Só pode interessar mesmo a quem pouco se importa com o que aconteceu com o atacante mais recentemente.

Vou portanto voltar a esse assunto e deixar a viagem de Ubiratã, o Tupinambá de Rafael Pinotti, para a semana que vem.

No fundo, o aspecto político do que Vini sofreu é o que nos interessa, sobretudo como ele reagiu à discriminação de que foi vítima. E nosso craque do Real Madrid se comportou de forma impecável, não importa onde ele tenha nascido.

O escritor nigeriano Wole Soynka tem um pensamento que ilustra bem o que diríamos sobre o caso: às vezes “podemos, como o tigre, apenas nos impor na floresta”. E, independentemente de seus motivos, Vini Jr. simplesmente se impôs na floresta!

Já disse e repito: não foi apenas a cor da pele que surpreendeu a torcida que enfrentava o time de Vini Jr. Uma torcida que tem consagrado vários heróis da mesma cor, no futebol ou em outra atividade (como, por exemplo, o craque do basquete americano Lebron James), além de outros jogadores do próprio futebol vindos de várias partes do mundo para jogar em times locais, como é costume na Espanha e na Europa em geral.

Foi sobretudo o costume desconhecido da dancinha para comemorar o gol de seu time, uma dancinha da qual Vinícius estava cansado de tomar a iniciativa desde que havia jogado no Flamengo carioca. O que irritou o frequentador espanhol foi portanto um costume cultural a que ele não estava acostumado. Uma reação à cultura que não era a sua, não era conhecida do torcedor.

É essa a novidade a que as sociedades dominantes no mundo, sobretudo a europeia, têm que se acostumar, essa suprema diferença entre nossos povos. Não nos comportamos como eles e eles não se comportam como nós. Não há motivo algum para considerarmos os costumes desses povos superiores aos nossos, seja no futebol, seja em outro hábito qualquer de cada sociedade.

Essa constante antidemocrática deu aos colonizadores europeus uma sensação equivocada de superioridade em relação aos indígenas encontrados no Novo Mundo. E, ao mesmo tempo, um sentimento de inferioridade desses povos locais que se submeteram à falsa superioridade.

A dancinha de Vini Jr., que tanto irritou os torcedores do Valencia e outros cidadãos espanhóis que não a quiseram entender e aceitar a tradição que não conheciam, corresponde exatamente a tudo que gente como os atuais pensadores indígenas tentam agora nos explicar (quanto tempo perdido!).

No prefácio de “O Bangüê nas Alagoas”, Gilberto Freyre nos diz o que esses autores nos esclarecem hoje. Ali, o grande antropólogo nordestino escreve que esse é “um sistema de que ninguém consegue separar a formação do Brasil”.

E é isto o que só nos importa neste episódio.