Artigo

Chico com Nara Leão e Cacá Diegues em 1972 Jorge Ventura / Agência O Globo

O que me consola

Cacá Diegues - Jornal O Globo - 02 Abril de 2023

O importante era passar os filmes numa sala decente de exibição e obter reações favoráveis


Não me lembro mais das datas. Para falar a verdade, mal posso garantir o ano em que se deu o sucedido. Mas posso assegurar o que aconteceu e com quem.

Naquela época, se realizavam muitos festivais de filmes nacionais, num tempo em que ainda era bonito e de bom-tom difundir esses filmes entre pessoas importantes que tanto podiam ser CEOs de empresas que tinham ajudado a financiar a produção das obras ou simplesmente departamentos de imprensa e divulgação a que os filmes estavam submetidos, ligados às companhias distribuidoras que os estavam lançando no mercado convencional. Tanto fazia. O importante era passar os filmes numa sala decente de exibição e obter reações favoráveis de Moniz Viana e de mais algum editor cujo coração batesse mais apressado quando era um brasileirinho que ia ser exibido na festa quase sempre universitária.

O importante era que a gente sabia quando valia a pena lutar pela exibição de nosso produto no festival específico.

Aquele festival de filmes brasileiros ao qual me dirigia naquele fim de verão era em Salvador, sonho de todos nós, pedaços de praia e luzes que nossa ignorância não conseguia medir o quanto era realmente importante a repercussão. Mas, na pior das hipóteses, poderíamos gozar um fim de semana que só os casais bem situados na vida poderiam autofinanciar para prazer e gozo deles próprios.

Cheguei em Salvador cheio de sonhos e expectativas de sucesso. E ela estaria lá, assistindo à minha consagração, sem poder fechar os ouvidos, esconder os olhos ou se negar a ouvir as frases bem construídas por intelectuais que serviriam à campanha comercial de meus filmes.

Enquanto buscávamos e fazíamos buscar a cópia certamente maravilhosa de nosso filme para a exibição consagradora no festival de cinema brasileiro, deixávamos que se comentasse a qualidade superior do que estaria ali impresso. A glória definitiva de um filme que me consagraria como o novo Grande Mestre desse cinema jovem, promissor e rico em todos os aspectos possíveis e imaginários. O público viera ver o mais recente Oscarito, o último Grande Otelo, viera sonhar com a beleza da bela nova esposa de Cyll Farney, com seu corpo tão bem cuidado de candidata a princesa de nossas telas, com os enganos das outras mulheres à frente daquela coleção de mulheres de tanto valor.

Aquelas senhoras já de certa idade, disfarçadas de amigas e companheiras, impávidas e, ao mesmo tempo, sorrindo pelos milhões de cantos da boca, a revelar o que seria se fosse para valer, elas não pretendiam, não iam me desejar o mal e toda a sorte de vexames que eu poderia dar ali, dada minha proximidade dos acontecimentos que seriam tenebrosos. Ah, que pena que a jovem senhora não irá comigo ao final da noite, ela dançaria assim as últimas canções enredadas no mito do tamanho de meu serviço! Que pau.

Em vez disso, teremos apenas o valor do que meu trabalho pode garantir. Ou seja, não estarei dando vexame, mas aquele especial prazer em nunca ninguém ter visto outro igual acaba por desencorajar e desaparecer, perdido em sua mera originalidade, apertado pelo assunto irresistível de que nada nunca é igual. Como todos sabemos.

E assim vou perdendo o fio da meada, perdido por sua vez no mistério dos outros, quase soluçando aos pés de quem domina tudo de novo, como se nascesse ontem.

Quisera poder deixar tudo por conta do império que me consola!