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Comerical da Kombi elétrica, da Volks, com Elis Regina e Maria Rita — Foto: Reprodução

Como nossos pais

Cacá Diegues - Jornal O Globo - 16 de julho de 2023

E de repente estávamos diante de um mito nacional de outro tempo que nos lembrava que o tempo pode passar, mas as ideias e os sonhos que ele carrega consigo nem sempre passam


Imagine a cena. Lady Gaga chega para ver a estreia de “Coringa”, um filme que já era um mito público, mesmo antes de ser feito. Devo dizer que não compactuei com o mito e, quando o filme foi realizado e distribuído pelo mundo afora, reagi irritado com seu despudor, sobretudo por causa do personagem principal, que justifica sua falta de caráter pelo modo com que é tratado pelos outros. Para mim, o Coringa era uma construção perversa que apontava para um jeito de tratar o mundo como o mundo nos trata, sem respeito algum pelas leis morais e de comportamento, aquelas que nos permitem viver com dignidade.

Mas voltemos à tal cena. Lady Gaga se aproxima de um cinema onde se anuncia a pré-estreia da sensacional produção de Hollywood, um “conto moral” que usava um anti-herói da cultura popular nacional. Uma senhora que lidera um grupo de manifestantes, já sabendo o que representava o herói do filme, interrompe seus passos e a adverte. Diz que Lady Gaga não pode prestigiar a obra. “Você vai prejudicar sua imagem”, adverte a senhora, “e ainda vai acabar indo pro inferno”. A estrela, com tranquilidade, toma a moça pelos ombros e a beija na boca. Surpresa e assustada, a manifestante ainda ouve de Lady Gaga a resposta: “E a senhora vai comigo, para explicar ao pessoal do inferno do que trata o filme!”.

Esse vídeo tem circulado na internet como se fosse tudo verdade, mas faz parte das gravações de “Coringa 2”, que será lançado em 2024. Foi o bastante, no entanto, para provocar enxurrada de memes apoiando, ou não, a personagem ali representada por Lady Gaga.

Escândalo parecido se deu agora com anúncio da Volkswagen na televisão brasileira, interpretado pela cantora Maria Rita, com participação especial de sua falecida mãe, Elis Regina. A primeira dirige um veículo da Volks e por ela passa uma Kombi moderna, dirigida pela formidável cantora de nossa geração. As duas se olham, cantam uma para a outra e se sorriem com felicidade conduzindo as duas magníficas máquinas da Volks.

Devo dizer que, cada vez que vejo uma máquina da empresa alemã, não posso deixar de lembrar que li, há algum tempo, que a Volkswagen e seus proprietários foram responsáveis pela instalação e crescimento do nazismo na Alemanha, na Europa e portanto no mundo. Ela financiou Hitler e seu exército, além de apoiar explicitamente seus princípios.

Claro, isso se deu há mais de 90 anos, nem sei se a Volks ainda pertence ao mesmo pessoal. Mas não posso deixar de pensar no capitalismo alemão como uma das principais origens daquela catástrofe humana. É como se não pudéssemos deixar de lembrar do avião que jogou bombas sobre nossa cidade, nunca mais esqueceremos de sua marca ou de seu formato.

O anúncio em questão nos afasta dessas tristes lembranças logo de saída, ao nos oferecer como tema musical uma canção de Belchior, compositor popular que nos apresentou tantas alternativas por um mundo melhor do que aquele em que vivíamos ou do que nos lembrávamos de ter existido. Confesso que me embalei logo em minhas recordações de um tempo em que tínhamos fé num futuro melhor. E no que esse futuro podia nos sugerir através da voz inesquecível de Elis ali reproduzida digitalmente.

E de repente estávamos diante de um mito nacional de outro tempo que nos lembrava que o tempo pode passar, mas as ideias e os sonhos que ele carrega consigo nem sempre passam. Sobretudo quando nos ajudam a viver.

Ouvi dizer que, por causa desse comercial, o Conar abriu um processo para saber se é ético o uso de ferramenta tecnológica e inteligência artificial para trazer um morto de volta à vida. É o caso deste comercial, cuja reprodução da imagem de Elis Regina é obtida através de um “deepfake”, processo atualíssimo para o uso desses efeitos modernos de imagem e som. Como escreveu um leitor do Globo: “Toda razão será sempre menor do que a vida de qualquer pessoa”.